sexta-feira, 9 de março de 2012

Possível Utopia - CAP.II


CAPÍTULO II



   Átila cumpria uma série de apresentações num teatro do centro, onde executava suas composições musicais ou tocava seu trompete acompanhando sua banda de jazz.  Suas músicas versavam sempre sobre as imperfeições das estruturas sociais vigentes num contexto de elevado protesto que agradava principalmente aos jovens universitários.  Ao fim de cada apresentação havia sempre um debate de opiniões entre ele e o público, onde as idéias humanitárias e filosóficas imperavam de tal sorte que a maioria dos presentes preferia mais o debate que o show musical. Não era raro sair do teatro detido pela polícia, ocasião em que o público motorizado acompanhava a viatura policial até a delegacia. Lá permaneciam, juntando cada vez mais gente, até que as autoridades resolvessem liberá-lo.
 Quando das primeiras detenções ele fora ofendido física e moralmente, mas assim que ficou popular e a imprensa passou a divulgar o tratamento dado nessas ocasiões, sua situação se modificou totalmente, mesmo porque os movimentos populares disponibilizaram até advogados para defendê-lo e seus seguidores aumentavam cada vez mais com a perseguição.  A imprensa passou a acompanhar todo o movimento social e as repercussões dos abusos tornaram-se insustentáveis, a ponto de alguns delegados perderem seus cargos.  Em certa ocasião, um delegado que o prendera, por ordem do prefeito, queixava-se dos problemas que tinha de enfrentar em casa e no trabalho: - Rapaz, o que será que você tem nessa sua cabeça?... Por que não procura algo mais útil para fazer na vida?  Pare de ficar divulgando essas bobagens de um mundo melhor que isso não existe e nem existirá.  Essas idéias só lhe trazem aborrecimentos e também aos outros...  Eu tenho uma filha de 17 anos e um filho de 20 que só falam nessa tal sociedade nova que você vive pregando; e o pior é que isso repercute no relacionamento doméstico, escolar e até no trabalho deles.  Sabia que o mais velho, o Paulo, diz que vai abandonar tudo assim que souber onde vai ser essa comunidade?  Talvez a irmã queira ir junto...  Já imaginou o drama de quantas famílias que devem estar vivendo o mesmo problema?  Dou um duro dos diabos para criar meus filhos, dar-lhes uma boa educação, um bom emprego e após tantos anos de dedicação eles querem jogar tudo por terra.  Isso não revolta um pai?  Imagine quantas mães não o condenam por isso! Ao que contestou Átila: - Geralmente as grandes transformações sociais acarretam muitos conflitos...  As pessoas que descobrem uma nova maneira de viver, longe das imperfeições atuais, fatalmente provocarão rompimentos que irão desestruturar as crenças, as famílias e os costumes.  É isso, ou permanecer no “status quo”.  Os mais velhos e já acomodados nunca irão entender os mais jovens e muitos ovos serão quebrados... Há sempre a possibilidade dos pais seguirem os filhos, mas para eles é bem mais complicado, o que não significa abandonar uma melhor opção de vida só porque os mais velhos não podem acompanhar.   O delegado ficou meditando por certo tempo.  Talvez por causa dos filhos, queria acreditar naquele contexto, que não se tratava de nenhum subversivo, que talvez aquele músico acreditasse mesmo numa sociedade melhor... Não que isso pudesse acontecer, mas que ele poderia estar sendo sincero no que pregava.  Assim é que o delegado terminou por libertar o rapaz e o convidou para uma conversa mais demorada num bar.  Procurava conhecimentos capazes de equilibrar seu relacionamento com os filhos.  Fez uma proposta: - Veja Átila.  Não podemos conversar um pouco mais, noutro lugar, longe dessa delegacia?    - É claro que podemos!  Conheço um bom lugar para isso, se quiser acompanhar-me num chopinho gelado...  E saíram os dois no carro do delegado.  Chegados ao local combinado, sentaram-se e tão logo foram atendidos, pediram uma bebida gelada.  O delegado iniciou a conversa.    - Já andei ouvindo algo sobre essa nova sociedade, “onde ninguém é de ninguém”, conforme dizem.  Você está careca de saber que esse negócio de todos serem de todos é pura fantasia e que ainda não estamos tão evoluídos assim para encarar uma realidade desta, não é mesmo?  Será que você crê mesmo que um pai possa conceber essa filosofia de vida para sua filha?  Ou um marido concordar que sua mulher seja do homem que ela desejar?  Já pensou na bagunça que seria uma sociedade assim?  Ao que replicou Átila.  - Deixe-me ver como explicar o que sinto sobre isso.  Posso ser livre e direto com você?  - É claro, rapaz!  Estamos aqui para tirar dúvidas... – Então vamos lá! Sua mulher, a minha ou a de qualquer outro, não se vê obrigada a coisa alguma, por convenções sociais, assim como a sua filha e todos os membros comunitários. Não é como a sociedade vigente que segue religiosamente certas regras sociais que esmagam suas aspirações e sufocam sua liberdade de viver a vida que almejam.  Essas regras traçam comportamentos, liberdades e até as aspirações mais íntimas, oprimindo muitas pessoas, obrigando-as a viver uma realidade completamente diferente da que verdadeiramente querem.  Vamos dar um exemplo.  A você ou a mim só interessaria viver com uma mulher que realmente desejasse viver a meu lado, ou ao seu; que se sentisse feliz fazendo o que realmente quer, não é assim? Pelo menos assim seria, se não predominassem o machismo, o sentimento possessivo e o complexo de superioridade, tão comuns na sociedade vigente.  Daí se pode concluir que sua mulher, enquanto vivesse feliz a seu lado,  nem pensaria em viver com outro homem e vice-versa.  Olhando um pouco mais adiante, pode acontecer que você venha a conhecer outra mulher que venha a lhe completar melhor os sentimentos e vice-versa. Você passa a sentir-se mais feliz e realizado ao lado dessa pessoa, a sentir mais a vida, seu trabalho, mais vigor e sua disposição de produzir, de vibrar...  Será que sua mulher, observando sua melhora em tudo na vida, sua felicidade estampada na face, não ficaria também mais feliz com toda essa melhora?  Ou seria tão inferior a ponto de impedir essa felicidade por questões egoístas que em nada beneficiariam a vida de vocês?  Afinal, quem ama de verdade se alegra muito com a felicidade da pessoa amada...  É difícil concordar com isso? Não entra aí nenhuma magoa ou ressentimento, nenhuma cobrança, pois todos são felizes fazendo o máximo que podem pelo outro, não é mesmo?  – É uma situação difícil de entender... E os filhos, os amigos, a opinião pública, como ficam?  - Mas que opinião pública?  Não estamos tratando de uma nova sociedade, com valores e regras diferentes? Todos são criados sob as novas regras sociais e por tanto nada a estranhar, todos pensam e sentem do mesmo modo.  Não digo que mudarão as estruturas sociais?  A dificuldade em aceitar essas idéias está calcada nos padrões vigentes, onde cada homem tem a sua mulher, os seus filhos, seus parentes, seus amigos, etc. Quando não se valorizar mais tanto assim essa individualidade não haverão mais os preconceitos atuais.  As vinganças, as perseguições e os crimes passionais deixarão de existir, assim como o ciúme, a depressão e o ódio.  A vida será mais tranqüila, sincera e aberta, pois “as flores se darão a liberdade de se manifestarem como realmente são.  E nesse jardim da vida, expondo-se, podem ser escolhidas e ainda assim continuar florindo”. Por que a opinião das pessoas influencia tanto assim?... Por que se permitem magoar ou se ofenderem com aquilo que os outros pensam? Sejam como as flores e ofereçam aquilo de bom e de belo que vocês têm, porque este é o pensamento maior da nova comunidade.  O delegado ainda não se convencera dessa nova realidade, embora já não lhe parecesse tão impossível assim.  Comentou:  - Isso tudo não passa de um sonho muito louco, rapaz! O mundo jamais poderá compreender ou praticar esse sonho utópico. Ao que respondeu Átila. -Você acha mesmo?  Então, por que os seus filhos estão mudando tanto? Por que a polícia já não pode controlar-me como quer? Faz idéia de quantos seguidores eu já tenho até aqui?...  Saiba que um dia eu ainda chego lá onde quero e ainda irei contar com a sua ajuda e a de seus filhos.  E assim, Átila fazia simpatizantes onde chegavam suas idéias. Esse mesmo delegado já o houvera socorrido algumas vezes após a conversa que tiveram no bar. Médicos o atendiam de graça, sociedades civis e diretórios acadêmicos convidavam-no para conferências e debates. Sua fama atravessava os Estados e alcançava já outras nações, a ponto da Academia Estadual de Letras já ter manifestado o desejo de editar um livro com suas idéias. Átila ainda não se considerava pronto ou apto para isso. Certo círculo literário, composto por vários escritores e editores, vivia tentando por vários meios um encontro com o músico, com vantajosa proposta, a qual Átila teimava em recusar e isso durante dois meses.  Finalmente, após os primeiros acertos, seria recebido num tranqüilo sítio do interior do Estado, onde se hospedaria com sua atual companheira Denise, para as primeiras análises do livro a ser editado. Na data combinada, um grande automóvel foi apanhá-los em seu apartamento na capital para conduzi-los ao aeroporto, onde um helicóptero já os aguardava.  O Sr. Neiva, editor que contrataria seus serviços literários, juntamente com outros profissionais da área, formavam a comissão encarregada de proporcionar ao casal uma boa recepção e instalação nas dependências do sítio, onde pousaram numa bela manhã de segunda-feira.  Era um belo sítio, onde a natureza resplandecia por todo canto, conforme Átila adorava.  Não gostava muito de gente com idéias de lucro e consumismo, conforme pensou fossem aquelas pessoas que o convidavam.  Era também pouco afeito às formalidades sociais e às regras de etiqueta. Mas tinha de se adaptar, embora convivesse melhor com as relações informais, mais íntimas e descontraídas.  Não foi, portanto, com grande prazer que se aproximaram do grupo.  À frente vinha o senhor Neiva, que ele já conhecia por intermédio de Denise, que acertara aquele encontro.  Completavam a equipe mais dois homens e uma mulher.  O senhor Neiva fez as apresentações e conduziu todos a uma grande sala, no interior da casa, onde todos os recursos domésticos estavam à disposição do trabalho editorial a ser iniciado pela equipe.  Após breve troca de idéias sobre horários, serviços e pessoas envolvidas no processo, o senhor Neiva designou os quartos dos hóspedes, determinando que os empregados acomodassem os visitantes, conduzindo ele mesmo o músico e sua companheira.  Avisou que o café da manhã seria servido dentro de uma hora, na sala de jantar, e deixou-os à sós para um rápido banho e a arrumação das bagagens.  Denise se mostrara sempre cortês e atenciosa com os presentes, interessando-se pelos recursos da casa, do sítio e por tudo quanto se dizia no grupo, enquanto Átila mais se calava, sorridente, respondendo ligeiramente a uma ou outra pergunta, sem jamais iniciar qualquer comentário.  Após ligeiro banho Denise queixou-se:  - Mas você é chato mesmo, não?  Deixou todo mundo pouco à vontade com suas respostas secas e esse mutismo infalível com estranhos...  Não notou como eles estavam contentes por conhecê-lo?  - É verdade!...  Não sei o que há comigo e essa insegurança.  Parece até que desconfio das pessoas gratuitamente... – É isso mesmo! Precisa confiar mais é em si mesmo, caramba!  - O pior é que não sei ficar rasgando seda para quem não conheço direito e nunca sei o que devo dizer.  – Mas que belo lugar, não Átila? Como você sempre gostou... Já pensou em a gente ficar toda uma semana neste lugar, com toda essa mordomia?  Estou nas nuvens!...  Ao que contestou Átila: - Essa tarefa de escrever um livro em lugar de curtir o ambiente não vai me agradar muito, sabia? Precisarei estar presente a todas as reuniões, decisões e discussões, sei lá.  Muito chato!  Preferia mil vezes banhar-me no riacho, andar a cavalo, pescar, andar pelas trilhas, etc.  – Ah! Isso é que não!  Pensa que também não preferia?  Sabe o que faria agora mesmo, se pudesse?  Pegava você e a gente ia se amar dentro do rio. Depois iríamos correr pelos campos e descobrir os passarinhos que existem por aqui, verificar o que eles fazem e como gastam seu tempo.  Garanto que não é falando sobre livros ou sobre relacionamentos e evolução...      – Então porque não vamos agora mesmo?  Respondeu ele com ela pendurada em seu pescoço.  – Não podemos deixar o grupo ansioso por saber como e o quanto irão lucrar com mais uma história...  - Você vai escrever mesmo?... Já tem alguma idéia de como vai começar?...  - Não muito claramente.  Tudo vai depender das condições materiais, de tempo, das exigências, do local e dos recursos necessários... Não sei.  É a primeira vez que lido com essa experiência... – Não está um pouco ansioso em saber como se darão as coisas?   Eu estou muito nervosa.  Já pensou em ficarmos ricos e podermos comprar um sítio deste, com todos os confortos que estamos vivenciando agora?   - É, e aí largamos tudo e passamos a nos preocupar apenas com nossa vida particular, não?  Aliás, como todo mundo faz...  Mas que dá uma vontade danada, isso dá!  Depois a gente olha melhor e vê um monte de oprimidos apanhando da vida.  Liga a TV e só vê morte, guerra e fome.  Desliga, como se nada daquilo nos importasse, e dorme tranqüilo enquanto o mundo se acaba, não?  Denise, tem uma pá de gente que acredita no que eu digo e só espera um sinal para agir... – E o sinal esperado vem com esse livro que vai escrever?  - Pode ser!  Ele deverá iniciar um grande movimento humano que convergirá para o nascimento de uma nova forma de viver, conviver e evoluir.  Creio nisso, sinceramente.  E serei auxiliado, sinto isso também!  Já estou sendo por você, mas sinto que outras forças também conspiram para que tudo se concretize no momento certo.  E Denise:  - Não vá se empolgar muito antes do tempo certo!  Você é meio sonhador e gosta de se precipitar. Vá com calma e procure desfrutar um pouco do que vivemos no presente.
Todos já haviam descido para o café da manhã que fora servido às nove horas.  Conversavam animadamente na ante-sala a espera do ilustre casal. Ambos se aproximaram alegres e bem dispostos, trajando-se levemente e de chinelos de dedo. – Que tal? Gostaram do lugar?  Perguntou o anfitrião.   – Uma verdadeira maravilha! Respondeu Denise, ao que complementou Átila: - Num lugar assim a gente até remoça... Pode-se viver intensamente aqui neste paraíso!  Ao que anuiu o senhor Neiva: - Que bom que gostaram... Saibam que estará sempre às ordens e será sempre um grande prazer!... -Oh! Somos muito gratos, senhor Neiva! Disse Denise.  A um convite do senhorio, todos se sentaram e farto e sortido café foi servido aos presentes. Conversavam sobre os mais variados assuntos, incluindo a natureza, o clima e a vida simples que ali se podia ter.  Ao fundo o som dos Beatles animava o encontro. A certa altura da conversa o senhor Neiva aproveitou uma pausa para iniciar o assunto principal para o qual todos haviam sido convidados.  Dirigindo-se ao músico:  - Senhor Átila, penso que agora poderemos falar sobre a obra que deseja escrever, não?  E ele: - Sim, é para isso que viemos, mas prefiro deixar de lado o tratamento de senhor.  Será mais agradável chamar-me simplesmente por Átila. – Para mim está ótimo.  Se assim prefere será Átila daqui para frente.  Meu nome é Alfredo Neiva e também pode chamar-me de Fred, como fazem os mais íntimos, o mesmo servindo para todos aqui presentes. Esta é a Secretária Executiva Synthia, do grande amigo e editor Pedro Cláudio aqui e o nosso revisor, o professor Martins que irá propor nosso projeto sobre o seu livro.  E prosseguiu Martins com as idéias do projeto que aproveitaria a proximidade das férias escolares para a divulgação e lançamento do livro na praça.  Segundo ele é um período onde os jovens gostam e têm mais tempo para ler e mobilizar-se.  Continuou afirmando que o casal poderia ficar no sítio pelo tempo que fosse necessário, a partir de já, com todas as despesas  por conta da editora, as dele e da Denise. Se houvesse mais algum pormenor a acertar era só esclarecer e seria providenciado.  Coisas como, carro, viagens, empregados, etc.  Acrescentou que ele e a Secretária Synthia acompanhariam o trabalho “in loco” e o Fred estaria indo e vindo de acordo com as necessidades. Adiantou que Synthia era uma excelente digitadora e funcionaria como sua secretária até o encerramento dos trabalhos com o livro. Finalizou dizendo que todas as despesas correriam por conta da Editora Neiva, quando seria assinado o contrato para a publicação.  Átila achou muito boa a proposta e aprovou o projeto.  A maior preocupação era poder concluir o livro para o início das férias, mas achou que dava, pois grande parte já estava escrita em seus arquivos, faltando alguns complementos importantes e várias correções e atualizações, mas nada muito complicado.  Aceitou a proposta.  Martins apertou a mão de Átila, avisando-o de que procurasse ter paciência com a Synthia pela manhã, pois ela só acordava plenamente lá pelas nove horas e até as dez estava ainda meio mole. Segundo ele, ficava de muito mau humor se forçada a trabalhar antes das dez horas.  Ao que esclareceu Átila:  - Não se preocupe, Synthia.  Saberei respeitar seu metabolismo...  E ela: - Imagine se isso é cabível!... Pode me chamar a hora que precisar... Era só o que faltava!  Então o senhor Neiva, agora o amigo Fred, encerrou a negociação convidando todos para um banho na piscina, regado a aperitivos e tira-gostos para abrir o apetite. Vida de nababo! Tudo que eles desejavam desde que se entendiam como gente...        

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